Artigos & Produções Acadêmicas
![]() |
Bernd Reiter |
DEMOCRACIA, DESIGUALDADE E PODER SIMBÓLICO NO BRASIL[1]
BERND REITER, Junho de 2016
Associate Professor of Political Science and Graduate Director
School of Interdisciplinary Global Studies & Institute for Latin America and the Caribbean
University of South Florida
SOC 349
A CRISE DEMOCRÁTICA BRASILEIRA
Na minha visão, não há uma crise democrática hoje, no Brasil. Há várias. A crise mais profunda, a meu ver, é uma crise da chamada classe política brasileira. Essa classe política, para mim, inclui representantes eleitos, mas também outras elites com poder político: juízes, procuradores, advogados, entre outros. É uma crise profunda e prolongada em que a camada mais alta da sociedade, aqueles que se fazem chamar de “doutores,” ou então aqueles que Raimundo Faoro chamou “Os Donos do Poder,” não se importam com seu próprio País nem com o povo brasileiro.
Observando de fora a crise democrática que vem se tramando nos últimos meses, a conclusão a que cheguei é que essas elites políticas, econômicas e jurídicas estão perfeitamente dispostas a sacrificar o bem estar do País por motivos egoístas, de manutenção do poder. Vejo, de fora, também as elites intelectuais com a mesma postura, pois observo o surgimento de uma nova direita, agora desavergonhada, e uma velha esquerda, agindo de forma irresponsável. De ambos lados vejo acusações prematuras, feitas de forma a manipular a opinião pública; feitas para botar óleo num fogo que já causou muitos danos. Vejo uma imprensa cúmplice nessa irresponsabilidade, pois se presta a agravar a crise. Parece que ninguém se importa com as consequências que suas ações têm para o País e para o bem estar do povo.
Então, talvez a pior crise que eu vejo na democracia brasileira seja uma crise de irresponsabilidade das elites. Como se explica essa irresponsabilidade? Na minha perspectiva, certamente simplista, reconheço nessa irresponsabilidade uma falta de compromisso com o País. Vejo, em outras palavras, uma falta de certo nacionalismo – um nacionalismo capaz de unir um povo. Não vejo um povo brasileiro. Vejo um povo, sim, maltratado, desrespeitado, enganado e manipulado. E vejo uma classe política que não tem compromisso com o povo porque, de alguma forma, nunca se identificou com ele.
Canso de encontrar gente brasileira que, ao descobrir que sou alemão, relata que, no fundo, também é alemã, pois tem algum ancestral alemão. Nunca, nos meus quase 30 anos de ir e vir ao Brasil, encontrei gente que me falou dos seus ancestrais africanos ou índios.
O que quero dizer com isto: a crise mais profunda que vejo no Brasil é a crise de uma elite política, econômica e intelectual que sente vergonha do seu povo. Não do seu País, pois são muitos os brasileiros que gostam do País. Mas do seu povo comum, povo comum que não é branco, não é europeu e não é universitário. É como se as elites brasileiras quisessem ter outro povo – mais branco, mais educado, mais culto, mais “civilizado.” Essa atitude é uma atitude propriamente colonial. Também é uma atitude que justifica e reproduz a exclusão, o racismo, o paternalismo e o clientelismo. Finalmente, é uma postura que reproduz a hierarquia social, pois para que “o culto” e o “civilizado” possam existir, o “bárbaro,” o “atrasado” e o “inculto” têm que ser inventados.
Ou seja: somente existe essa diferença no interior do povo brasileiro porque aqueles que se beneficiam dela a inventam e a reproduzem. Não existe, em si e só, uma pessoa culta ou civilizada. Para parecer culto e civilizado, uma pessoa tem que primeiro definir o que é culto e o que não é – e depois tem que afetar certas formas de atuar, de falar, de se vestir e de consumir a grupos específicos – classificando, assim, uns como cultos e outros como incultos e não civilizados. No Brasil, as referências para se distinguirem e assumirem posições elevadas na hierarquia social são todas europeias. São cultas e civilizadas as pessoas que são brancas, sabem comer como os franceses e falar e escrever como os doutores formados em Coimbra. Dessa forma, num País formado por influências indígenas, africanas e europeias, somente o componente europeu é valorizado e as outras influências são menosprezadas e discriminadas.
Só para deixar claro: não há nada de fixo nos comportamentos considerados cultos ou civilizados no Brasil. O “culto” é uma convenção social, inventada para reproduzir e justificar privilégio. Os brasileiros formais, de classe média e média-alta, são especialistas na área de reproduzir privilégios e assegurar vantagens perante outros na base da cor da pele e do gênero. Além de raça e gênero, brasileiros de classe média e média-alta se utilizam de um vasto arsenal de técnicas linguísticas e procedimentais sofisticadas para conseguir a meta de defender privilégio e, com isso, reproduzir a exclusão social.
Virar a Ótica
Para poder entender os mecanismos causais por detrás da exclusão social, acho importante entender primeiramente como é que se constitui a exclusão e quero propor uma lógica, talvez peculiar, para analisar exclusão: quero propor que, para entender melhor a exclusão, não temos que analisar as vítimas da exclusão: os pobres, negros, indígenas ou as mulheres. Em vez disso, temos que analisar bem mais os que ganham com a exclusão, os que construíram sistemas excludentes e os que se beneficiam, diariamente, da exclusão, ou seja, os ricos, os homens e aqueles que clamam ser brancos e descendentes de “boas famílias”. São estes, a meu ver, que temos que analisar e problematizar.
Fazer isto nos permite não só entender melhor como funciona a exclusão, quanto como foi construída, mantida e quem se beneficia dela. Permite também sair da tendência, muito presente entre as ciências sociais, de repentinamente focalizar nossa atenção nos pobres, negros, indígenas – os excluídos - e contribuir, dessa forma, para a ideia, errônea, de que são eles que constituem um problema. Quero ser bem claro nisso: na minha visão, não são os pobres que são um problema - são os ricos; não são os negros - são os brancos; não são os indígenas – são os mestiços; e não são as mulheres – são os homens. Isto porque os excluídos não estão no poder e, portanto, não foram eles que desenharam, construíram e mantiveram sistemas excludentes. Também não são eles que se beneficiam de sistemas excludentes. Ao contrário, são todos aqueles que têm privilégios e vantagens herdadas e injustas que quero problematizar aqui.
Fazer isto não deveria ser uma tarefa só dos excluídos. Como alemão, posso afirmar que a Justiça libera - especialmente todos aqueles que se beneficiam de injustiças. A Justiça permite se livrar de culpa e a Justiça é a única base que permite construir uma comunidade política, que é o pré-requisito básico de qualquer democracia.
Neste momento, o Brasil não tem uma comunidade política. Tem várias. Existe a comunidade dos incluídos, privilegiados, empregados regularmente, trabalhando com carteira assinada, em profissões de prestígio – e existe uma série de outras comunidades de excluídos, trabalhando em setores informais ou mal remuneradas, como pequenos agricultores ou empregadas domesticas.
Ao alemão Georg (Wilhelm Friedrich) Hegel se tem creditado a elaboração da relação – íntima – que conecta os excluídos ao incluídos; as empregadas aos patrões; os escravos aos seus donos; os negros aos brancos, etc. Hegel nos ajuda entender que a dominação, quanto mais explora e humilha os excluídos, mais destroça a integridade moral dos dominadores. Enquanto faz de uma pessoa um escravo, a dominação faz do outro um monstro.
Foi o francês Jean Michel Foucault quem mostrou que relações de poder permeiam todas nossas vidas e relações, sempre. Se tomamos Hegel e Foucault a sério, vemos que todos somos monstros quando oprimimos - seja as nossas empregadas, seja nossas esposas, seja nossos filhos, seja nossos alunos. Para ser plenamente humano e resgatar nossa dignidade, temos que ter Justiça. Esta Justiça tem que ser uma Justiça que permite que cada um tenha a mesma chance de avançar na vida – independentemente da cor, da etnia, da língua, do sexo, da idade, da religião ou da nacionalidade.
Ou seja: todos nós, em algum momento ou outro, somos monstros quando nos aproveitamos dos outros. Digo isto porque quero evitar que o exercício que quero realizar aqui seja percebido somente como algo “dos outros” – dos donos do poder, dos ricos, da burguesia, dos homens ou dos brancos. Ninguém se acha privilegiado. Pouca gente se considera elite. Todo mundo, dessa forma, evita se incluir na análise. Estou aqui para dizer: estou falando de nós. De mim mesmo e de vocês, universitários, gente da classe média.
Um dos momentos em que fica mais claro que o Brasil não tem uma só comunidade política é justamente na hora de se comparar. Canso de ver gente da classe média brasileira que se compara comigo, com meu salário, meu estilo de vida e meus benefícios como professor universitário nos Estados Unidos. Mas eu não faço parte da sua comunidade política – eu venho de outra. Nunca vejo gente brasileira de classe média se comparando com sua empregada, ou com seu mecânico, eletricista ou gari. Estes, sim, fazem parte da sua comunidade política e deveriam ser eles a servir de medida em comparações de salários, férias e direitos. Ou seja: não venha comparar seu salário com o meu. Compare-o com o de sua empregada. Pare de reproduzir referências estrangeiras para medir, comparar e acessar coisas brasileiras. São referências coloniais ou pós-coloniais que só fazem reproduzir a divisão profunda que marca a sociedade brasileira. O primeiro passo para criar uma comunidade política consiste em se livrar das referências estrangeiras.
Protocolos
Em julho de 2008, entrevistei um grupo de mulheres negras organizadas numa ONG local na cidade de São Luís do Maranhão. Sua organização está dedicada a ajudar os habitantes pobres dessa cidade de cerca de um milhão em sua busca por receber benefícios federais de habitação e se qualificar para receber um empréstimo habitacional do governo federal, destinado a famílias de baixa renda. Concretamente, a ONG ajuda aqueles que se qualificam para solicitar financiamentos hipotecários oferecidos pelo Estado e pela Caixa Econômica Federal.
A existência de uma ONG dessa natureza ressalta as dificuldades que cidadãos comuns tendem a encontrar ao lidar com o domínio público. Durante a entrevista, quando elas me contavam suas experiências em lidar, frequentemente, com gerentes de bancos e funcionários públicos, acabei perguntando diretamente: como é que vocês são recebidas pelos representantes do poder e do dinheiro - uma vez que vocês são mulheres, negras e pobres? Uma das entrevistadas me explicou:
Levamos um ano inteiro para preencher todos os formulários exigidos pela Caixa Econômica. Se formos para o secretário municipal de gestão da cidade e pedir uma reunião com o secretário, a pessoa na entrada nos trata muito mal e agenda uma reunião em dois meses. Nós sentimos a discriminação todos os dias. Nosso maior desafio é superar isso. O preconceito é muito forte. Os obstáculos burocráticos são muito grandes e sempre temos que quebrar protocolos.
Essa declaração é típica e indica dois problemas, muitas vezes citados: primeiro, a necessidade de preencher formulários extremamente complicados para requerer qualquer coisa ao governo. De fato, alguns formulários são tão difíceis de preencher e requerem um preparo tão especifico que pessoas comuns são efetivamente barradas nos serviços disponíveis. Os que ainda assim insistem em aplicar têm que recrutar – e pagar – um especialista da classe média ou alta para servir de intermediário na relação estado: cidadão pobre. Vê-se que o paternalismo faz parte integral da relação entre estado e cidadão comum brasileiro, pois este precisa da “ajuda” de gente da classe média e alta para se relacionar com o governo.
O fato que pessoas pobres não podem acessar programas desenhados para pessoas pobres lança uma dúvida muito séria sobre a seriedade do governo. Se preencher um formulário destinado para gente pobre requer uma formação universitária, então se vê que estes programas não são um bem para a gente pobre. Vê-se também que o governo desenha protocolos cuja principal função é excluir os setores informais da sociedade.
Se a esfera do poder, desta forma, se enquista (como dizia Raymundo Faoro) e se distancia do povo brasileiro, o setor do dinheiro, ou seja, os bancos, não é diferente, como também se viu no trecho do depoimento acima.
Os bancos brasileiros talvez sejam piores ainda que os governos, representantes do estado, pois nos bancos existem “clientes de ouro”, onde gente rica é tratada de forma diferenciada e privilegiada enquanto o cidadão comum fica mofando na fila. Me lembro também quando muitos bancos brasileiros começaram a instalar caixas eletrônicos para todos os serviços que eles oferecem. Me lembro das dificuldades que eu tive em lidar com estas máquinas, pois pediam muita informação e requeriam que a pessoa reagisse de forma muito rápida aos comandos da máquina. Eu, com meu doutorado, muitas vezes não consegui efetuar meus trâmites nessas máquinas. Posso lhes dizer que os caixas na Alemanha e nos Estados Unidos são bem mais fáceis de manipular e não requerem tanta perspicácia como num País onde apenas 12% da população tem uma formação universitária e onde mais da metade da população é considerada completamente ou funcionalmente analfabeta (IBOPE, 2005).
Parece que as pessoas que controlam poder e dinheiro no Brasil criaram protocolos que regulam as formas como o cidadão comum devem interagir com eles – e esses protocolos são altamente excludentes. Parece que são desenhados para um cidadão francês ou alemão, com formação acadêmica, e, me atrevo dizer, são esses cidadãos alemães e franceses que os poderosos no Brasil queriam ter como cidadãos. Em vez de um povo ter representantes deles na administração do poder e do dinheiro público, no Brasil, parece que não é o povo que elege seus representantes, mas são os representantes que gostariam de eleger um outro povo, se fosse possível.
O segundo problema que a entrevista de São Luís indica é a questão da cor da pele e do gênero. Parece que as pessoas da ONG que entrevistei são percebidas como pobres de pouca importância pelo porteiro e também pelo gerente do banco onde elas querem entrar. Segundo elas, levam-se anos para superar o estigma que raça e gênero carregam e isso só se torna possível quando essa percepção geral é substituída por uma percepção privada, quase íntima. É quando o gerente finalmente as conhece pessoalmente que ele as recebe. Sem conhecê-las, as julga sem importância. Raça e gênero, dessa forma, servem de marcadores que classificam os seus portadores como gente que não vale a pena.
Na minha pesquisa sobre reforma educacional na Bahia, realizada nos anos 2000, detectei o mesmo tipo de pré-julgamento nas salas de aula das escolas públicas de Salvador: alunos pobres e negros eram percebidos e classificados, por seus professores, de forma geral e corriqueira como “gente que não quer nada da vida.” O vocabulário brasileiro anda cheio de referências para essa gente: pé de chinelo, Zé Ninguém, povão, povo, até mesmo cidadão, como diz Roberto da Matta. Isto talvez seria menos problemático num outro País, mas, no Brasil, a grande maioria do povo é classificada assim, transformando, então, uma maioria numa minoria ou transformando o cidadão comum no Outro: exótico e minoritário. O Brasil talvez seja dos poucos países onde “povo” também leva uma conotação negativa, como se as elites tivessem vergonha desse povo brasileiro.
Desta forma, me parece que a maior divisão da comunidade política brasileira é a divisão entre a comunidade formal e a comunidade informal, em que os integrantes da comunidade formal desenharam e instituíram regras, normas e protocolos que servem à sua proteção e à defesa de acesso privilegiado a recursos escassos, altamente desejáveis e disputados, tais como acesso ao poder, acesso ao dinheiro e acesso à educação. Nesse jogo de exclusão, raça e gênero servem como crachás de entrada ao setor VIP da sociedade brasileira. Nesse regulamento de acesso, poder dizer-se, de si mesmo, ser branco ou europeu funciona como capital simbólico que marca o pertencimento ao setor VIP dessa sociedade e revela, assim, a presença forte e continuada de aspectos coloniais e neocoloniais nessa mesma sociedade. Vocês vivem, em outras palavras, numa sociedade composta por descendentes de índios, negros e alguns descendentes de colonizadores brancos – onde todo mundo, não só as elites, supervaloriza o componente branco colonizador e menospreza os outros componentes.
Os que conseguem se vincular a esse simbolismo colonial o utilizam para a construção e defesa de privilégios e os que não conseguem sofrem o maltrato dos outros. A única forma de escapar dessa dinâmica é o tal de “quebrar os protocolos” mencionado pelas entrevistadas.
Protocolos
No caso da ONG Maranhense, os protocolos impostos consistem em ficar na fila, preencher formulários, marcar reuniões, voltar para marcar mais reuniões, ficar na fila de novo, preencher mais formulários, etc. Todos nós que não somos clientes de ouro sabemos do que estou falando. Eu já tive que pedir uma “audiência” com o secretário de educação da rede municipal de Salvador e esperar horas para finalmente ser atendido por esse “doutor” sem doutorado que se fez chamar de “sua excelência, o Senhor Doutor Fulano de Tal.” Vemos, claramente, a presença de protocolos aristocráticos nessas práticas muito comuns.
Sabemos que esse tipo de distanciamento dos setores VIP do povo é bem tradicional no Brasil. Veja-se, a propósito, a análise da socióloga Elisa Reis, que analisou cartas enviadas ao Ministério de Desburocratização, entre 1980 e 82, ou seja, na época militar.
Uma pessoa reclama:
Tenho ido àquela repartição tantas vezes! A cada vez eles me dizem que preciso de mais um documento antes de começar a receber [minha aposentadoria]. Depois de pagar minha contribuição durante tantos anos enquanto eu trabalhava, por que não posso colher os frutos de meus esforços e viver minha velhice em paz? (Reis, 1990: 165).
Outro exemplo:
Ter que ir ao médico para pegar o atestado de que, sim, estou viva é uma carga muito grande para mim. Eu sou velha demais para enfrentar filas repetidas vezes com a finalidade de consultar um médico para dizer oficialmente que ainda não morri! (Reis, 1990: 166).
Seria cômico, se não fosse tão trágico.
Mais dois exemplos apresentados por Elisa Reis:
Já juntei 425 documentos para atender as exigências feitas pelo governo federal na tentativa de conseguir uma declaração de que cumpri corretamente com as obrigações fiscais de minha pequena firma! (Reis, 1990: 166).
E:
Fiquei na fila durante 12 horas, sob chuva pesada, para receber o abono salarial de que eu precisava desesperadamente, sem qualquer resultado. Por que os trabalhadores têm que ser submetidos a tratamento tão desumano? (Reis, 1990: 166).
Por que mesmo? A resposta, a meu ver, é simples: porque os setores incluídos se beneficiam dessa exclusão e a instrumentalizam para assegurar seu acesso privilegiado a bens altamente desejáveis. Lendo esses documentos dos anos 80, não parece que as coisas melhoraram muito nos últimos 30 anos. Antes me parece que esta forma de enquistamento e distanciamento simbólico das esferas de poder e do dinheiro ficou ainda mais institucionalizada e consolidada, estruturando uma sociedade inteira. Hoje, todo mundo quer ser cliente VIP, em que ser VIP ainda hoje se define por ser branco, ter formação universitária e poder manipular os símbolos que regulam o acesso ao setor VIP – inclusive o idioma.
É o prolongamento e, de fato, a expansão geral da tal “Burocratização da dominação patrimonial” que Florestan Fernandes acusou no seu livro sobre a Revolução Burguesa no Brasil, publicado em 1975 e republicado em 2006 (pagina 116). Raymundo Faoro é outro especialista do assunto, pois explica no seu livro Os Donos do Poder [1957] (2001):
O estamento, quadro administrativo e estado-maior de domínio, configura o governo de uma minoria. Poucos dirigem, controlam e infundem seus padrões de conduta a muitos. O grupo dirigente não exerce o poder em nome da maioria, mediante delegação ou inspirado pela confiança que o povo, como entidade global, se irradia. É a própria soberania que se enquista, impenetrável e superior, numa camada restrita, ignorante do dogma do predomínio da maioria.” (Faoro, 2001:107-108)
E:
A elite governamental, dentro da rede social da aristocracia, da qual o estamento tece sua estrutura externa, obedece ao cunho do estilo de vida, das normas de conduta da nobreza burocrática. (Faoro, 2001:108)
Vivemos, hoje, acredito eu, numa situação onde esse habitus arrivista se expandiu pela sociedade inteira, pois todo mundo que ser cliente VIP num sistema onde somente os clientes VIP são respeitados e tratados de forma digna e correta.
Essa construção simbólica de poder tem, também, um componente linguístico. Vamos nos debruçar um pouco mais sobre isto:
A Linguagem da Exclusão
O uso de protocolos para defender privilégio e status social é praticado nos encontros diários entre os membros formais e informais da sociedade brasileira e serve à função de controlar o acesso ao mundo formal, ou VIP. Nisso, a língua trabalha em conjunto com o habitus geral de uma pessoa ou de um grupo (Bourdieu 1987, 2003). Códigos linguísticos desempenham um papel importante nessa regulação de acesso aos camarotes da vida. O Brasil não é um caso único. É simplesmente um caso interessante e ilustrativo.
Num país onde o acesso à educação formal é muito restrito, a educação formal torna-se uma ferramenta central na construção e na defesa de privilégios. Só para ter certeza: em 2013, a média de escolaridade brasileira atingiu 7,5 anos. Em 2010, o analfabetismo atingiu 13,3% de negros (13,4% de pardos) e 6% de brancos. O analfabetismo funcional, ou seja, a taxa de pessoas, acima de 15 com menos de 4 anos de escolaridade, era de 25% entre negros e 15% entre brancos. Quer dizer: entre os negros e pardos acima 15 anos de idade, uns 38% eram analfabetos ou funcionalmente analfabetos enquanto o mesmo é verdade para 21% dos brancos. Na região do nordeste brasileiro, esses índices são ainda bem piores.
Formalidade na linguagem nesse contexto é altamente eficaz na constituição e defesa de privilegio. Explica John B. Thompson, que escreveu o prólogo do livro Linguagem e Poder Simbólico de Pierre Bourdieu (2003): “Quanto mais capital linguístico os falantes possuem, mais eles são capazes de explorar o sistema de diferenças para a sua vantagem e, assim, garantir um lucro da distinção. As formas de expressão mais valiosas são aquelas que são distribuídas mais desigualmente” (Thompson, 2003:18).
Pierre Bourdieu de fato oferece uma estrutura analítica que nos permite analisar a linguagem em sua relação com o poder. Ele argumenta que, em geral, “os usos sociais da linguagem devem o seu valor especificamente social ao fato de que eles tendem a ser organizados em sistemas de diferenças (...) que reproduzem, na ordem simbólica de desvios diferenciais, o sistema de diferenças sociais” (Bourdieu 2003: 54).
Para Bourdieu, a linguagem é apenas uma das manifestações, bem como uma ferramenta, para negociar diferenças nas interações diárias. Ele explica que “elocuções não são apenas (salvo em circunstâncias excepcionais) sinais de serem entendidos e decifrados; eles também são sinais de riqueza, destinados a serem avaliados e apreciados, e sinais de autoridade, destinados a serem acreditados e obedecidos” (Bourdieu 2003:66).
Junto com o capital financeiro, Bourdieu demonstra que outros capitais são igualmente funcionais na estruturação do espaço social. Além do capital social e cultural, Bourdieu defende considerar o “capital linguístico, que produz um lucro de distinção” (Bourdieu, 2003:55). Para ele, então, a linguagem reflete e produz hierarquia social e “toda a estrutura social está presente em cada interação.” (Bourdieu 2003: 67).
Uma vez que essa percepção básica é entendida, ela pode ser aplicada à análise de constelações mais específicas, por exemplo, àquilo que muitas vezes é chamado de variedade “alta” ou “oficial” de um idioma. Bourdieu explica que, “todas as práticas linguísticas são medidas contra as práticas legítimas, isto é, as práticas daqueles que são dominantes” (Bourdieu, 2003:53). Ele também explana os efeitos da utilização que diferentes códigos de linguagem têm no falante: “Falantes que não têm competência legítima são de fato excluídos dos domínios sociais onde esta competência é necessária, ou estão condenados ao silêncio.” (Bourdieu, 2003: 55)
Ao examinar a genealogia dessa alta linguagem, Bourdieu conclui que “a língua oficial está ligada com o estado, tanto em sua gênese como no seu uso social. As condições para a criação de um mercado linguístico unificado são criados no processo de formação do Estado, dominado pela língua oficial” (Bourdieu 2003:45).
A partir daí, Bourdieu também é capaz de lançar luz no lado oposto da língua oficial. Ao escrever sobre a “linguagem popular” Bourdieu considera que “reduzida ao status de jargões curiosos ou vulgares, em qualquer caso impróprios para ocasiões formais, usos populares da língua oficial sofrem uma desvalorização sistemática” (Bourdieu, 2003:54).
Assim como qualquer outro mercado, as leis da escassez também se aplicam ao mercado linguístico: “Quanto mais formal o mercado, mais congruente com as normas da língua legítima e mais dominado pelo dominante, ou seja, pelos titulares da competência legítima, autorizados a falar com autoridade” (Bourdieu, 2003:69).
Os efeitos do capital linguístico são múltiplos, especialmente no campo da dominação: “A realidade de legitimidade linguística consiste precisamente no fato de que indivíduos dominados são sempre sob a potencial jurisdição da lei formal, mesmo quando eles passam toda a sua vida, como o ladrão descrito por Weber, além do seu alcance. Mas quando colocados em uma situação formal, são condenados ao silêncio ou ao discurso quebrado” (Bourdieu, 2003: 71f). A língua dominante faz mais do que controlar as pessoas incapazes de falar ou escrever. Ela os silencia. “Os constrangimentos exercidos pelo mercado através da antecipação do lucro possível assumem, naturalmente, uma forma de censura antecipada, uma autocensura que não determina somente a maneira de dizer, isto é, a escolha do código linguístico apropriado ou o 'nível' correto da linguagem; mas também o que é possível dizer ou não” (Bourdieu, 2003: 77).
Isto acontece, de acordo com a Bourdieu, porque “o sentido do valor dos produtos linguísticos é uma dimensão fundamental de saber o lugar que a pessoa ocupa no espaço social” (Bourdieu 2003: 82).
De acordo com o linguista italiano Maurizzio Gnerre (1991), que escreveu sobre esse fenômeno no Brasil, “a língua padrão é um sistema comunicativo ao alcance de uma parte reduzida dos integrantes de uma comunidade; é um sistema associado a um património cultural apresentado como um ‘corpus’ definido de valores, fixados na tradição escrita” (Gnerre 1991:6). Este é certamente o caso do Brasil, onde mais 20 por cento da população é classificada como funcionalmente iletrada, o que significa que ela não tem acesso, muito menos domínio, aos códigos elaborados e formais do idioma. Gnerre conclui que “os cidadãos, apesar de declarados iguais perante a lei, são, na realidade, discriminados já na base do mesmo código em que a lei foi escrita. A maioria dos cidadãos não tem acesso ao código, ou, às vezes, tem uma possibilidade reduzida de acesso.” (Gnerre 1991:10)
O mesmo autor também explica que “a separação entre variedade 'culta' ou ‘padrão’ e as outras é tão profunda devido vários motivos; a variedade culta associada à escrita (...) e associada à tradição gramatical; é inventariada nos dicionários e é a portadora legítima de uma tradição cultural e de uma identidade nacional” (Gnerre 1991:11). Gnerre não deixa dúvida sobre a função do código elevado da linguagem - uma função que pode ser remontada ao século XVI, mas que serve ainda hoje à constituição de poder.
Como Benedict Anderson (2006) descreveu, e Martin Luther demonstrou na prática muito mais cedo, qualquer comunicação, seja ela escrita ou oral, feita num código linguístico exclusivo, como Latim ou Português Europeu, serve ao propósito de restringir o círculo de participantes a um mínimo. E é este círculo restrito de educados, cultos, ou iniciados, que tende a utilizar seu acesso privilegiado não só para dominar e controlar a maioria, mas também para renovar a sua própria fonte de legitimidade com referência ao acesso ao conhecimento privilegiado. A lógica circular torna-se evidente: os poderosos definem uma linguagem exclusiva e a codificam; em seguida, eles a usam para exercer o seu poder; e, finalmente, eles reforçam o seu poder através de exclusividade linguística.
Como Gnerre destaca, “a língua constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (Gnerre 1991: 22). No contexto brasileiro, a linguagem dos iniciados, o português alto, sofisticado, escrito e codificado em Coimbra e mantido na sua “pureza” pela Academia Brasileira de Letras, um Português que exclui todos aqueles que são analfabetos funcionais ou que ficam, de algum modo, prisioneiros a sua própria informalidade.
Isto torna-se particularmente relevante onde os educados formalmente controlam e regulam o acesso às esferas de poder, por exemplo nas agências estatais e nos bancos. Nesses ambientes, a linguagem formal e a sofisticação protocolar servem como instrumentos eficazes para manter todos os elementos informais fora.
Informalidade, no contexto brasileiro, refere-se a todos aqueles que não são capazes de dominar e manipular os códigos elaborados, marcando-os, assim, como potencialmente incultos e pobres.
Em 2009, cerca de 21,7 por cento dos brasileiros com quinze anos e mais velhos eram classificados como analfabetos funcionais. Um estudo do Banco Mundial, de 2007, afirmou que “segundo os testes internacionais PISA, cerca de metade dos jovens brasileiros de 15 anos têm dificuldade em ler ou não sabem ler; e cerca de três quartos não pode gerir as operações matemáticas básicas.” De acordo com Ulyssea e Szerman (2006), perto de 35 por cento dos brasileiros são ativos no setor informal. Isto nos diz que quase a metade (dependendo da região) dos brasileiros está efetivamente excluída das esferas da sociedade reservadas à sociedade formal ou oficial, sugerindo, assim, uma forte correlação entre informalidade econômica, analfabetismo, pobreza e cor da pele.
De fato, as divisões da sociedade brasileira são profundas e podem ser remontadas à época colonial. Desde o início da colônia, os brasileiros privilegiados faziam parte daquilo que Franklin Knight (1990) chamou de “sociedade oficial”, um termo que ele emprega para descrever essa parte das sociedades de plantação que teve acesso ao mundo formal e à alfabetização. A maioria da sociedade de plantação, de acordo com Knight, foi informal. Essa parte da população surgiu de forma não planejada, como um efeito colateral da escravidão e do trabalho servil. A coroa portuguesa, bem como o governo brasileiro independente, por um longo tempo não tinha um plano concreto para esses grupos. Eles foram simplesmente visto como um problema e, finalmente, tornaram-se “o problema social” de Getúlio Vargas, sob cuja presidência os primeiros programas sociais foram promulgados e dirigidos a esses grupos que eram pobres, cada vez mais urbanos, funcional ou totalmente analfabetos, e não brancos na sua maioria.
Aqueles grupos sociais que foram percebidas como problemáticos na época Vargas nunca conseguiram desafiar e muito menos reverter hierarquias sociais que os projetaram para uma posição inferior. Mesmo depois da redemocratização e da inclusão política, em 1988, o sistema de valores e normas sobre as quais as hierarquias sociais eram construídas sobreviveu, levando alguns a referir-se ao Brasil como uma “sociedade não-revolucionária” (Mander 1969).
Na verdade, com poucas exceções, muitos brasileiros pobres, negros e indígenas ainda são excluídos, sem serem considerados membros iguais, e seu acesso à cidadania plena lhes é barrada. Os mecanismos para mantê-los fora, no entanto, mudaram ao longo do tempo.
O Brasil tem uma longa história de criar uma cidadania diferenciada. Como James Holston (2008) mostrou recentemente, a lei eleitoral brasileira de 1881 introduziu eleições diretas, voluntárias, mas também exigiu o eleitor ser alfabetizado e ter uma certa renda como classificações. Com isso, a porcentagem de eleitores caiu para 2 por cento dos adultos, ou 1 por cento da população (Holston 2008: 102). Holston também mostra que, no Brasil, restrições eleitorais ao sufrágio foram mantidas até 1985, com 50 por cento analfabetos em 1950 e 25 por cento em 1980.
Mesmo que esse cenário tenha mudado completamente em 1988, quando o sufrágio foi estendido para incluir analfabetos e a idade de voto foi reduzida para dezesseis anos, o Brasil continua a tratar seus cidadãos de forma separada. Mulheres podem se aposentar mais cedo que homens; gente com formação universitária pode ir a prisões “melhores” – reservadas só para eles; gente com alguma formação universitária continua ser chamada de “doutor” ou “doutora” – mesmo sem nunca ter defendido uma tese de doutorado. Do lado oposto, gente comum maltratada, chamada de “gentinha” ou “povão” – e mandada, literalmente, ao fim da fila.
Se essa gente se atrever a interagir com o estado, é intimidada e seu acesso bloqueado por protocolos complicados e por códigos linguísticos neocoloniais, sofisticados e difíceis de dominar sem bastante educação formal. A maioria de ONGs que eu conheço do Brasil, portanto, é formada por gente muito educada da classe média que trabalha “para” os pobres, “para” os negros e “para os indígenas – mas nunca com eles. Os excluídos, para ganhar acesso às esferas do poder e do dinheiro, têm que chamar agentes da classe média para servirem de intermediários. Fazendo isto, a classe média tira um pedaço para si mesma, ganhando dos pobres e excluídos – e as hierarquias sociais se mantêm.
A Linguagem Codificada da Lei
Um domínio muito consequente em que esta distinção entre o formal e o informal tem uma força estruturante é a lei. Como Gnerre (1991) explica, “para redigir um documento qualquer de algum valor jurídico, é realmente necessário não somente conhecer a língua e saber redigir frases inteligíveis, mas conhecer também toda uma fraseologia complexa e arcaica que é a praxe” (Gnerre 1991: 22). Esta é certamente a linguagem usada em documentos judiciais e os depoimentos das entrevistadas acima apontam para essa dificuldade. Se o preencimento de formulário para um programa de habitação social levar um ano, é seguro dizer que este não é um efeito colateral indesejado, mas sim um ingrediente funcional do processo de aplicação. A mesma lógica aplica-se aos códigos legais do Brasil em geral: escritos por advogados eruditos e estudiosos humanistas, não são escritos para o setor informal da sociedade do Brasil. Em vez disso, eles servem à função de estabelecer prestígio, colocando os editores no auge cultural da nação e a par com outras nações colonizadoras comumente percebidas como civilizadas e cultas. Afinal, como Gnerre explica: “A função central de todas as linguagens especiais é social: elas têm um real valor comunicativo mas excluem da comunicação as pessoas da comunidade linguística externa ao grupo que usa a linguagem especial e, por outro lado, têm a função de reafirmar a identidade dos integrantes do grupo reduzido que tem acesso à linguagem especial” (Gnerre 1991: 23).
Basta ler um trecho do Diário Oficial da União para verificar o que estou falando. Nele, o mundo brasileiro formal, educado, letrado e civilizado discute assuntos de outra “gente boa e bonita” – ou então discute sobre os “outros brasileiros” sem que estes se deem conta, ou participem.
Na minha visão, é essa exclusão persistente, que trabalha de forma sofisticada e desonesta, pois pretende ser igual e inclusiva enquanto discrimina e exclui, que explica os desabafos eleitorais, chamados de protesto, no Brasil. É por isso, creio eu, que Tiririca se elegeu, pois o povo brasileiro está sendo maltratado e excluído por gente que ri na sua cara, gente que aparentemente só quer o melhor para o País e para si – enquanto continua se aproveitando de sistemas desiguais dia após dia. É também, na minha visão, um fator forte na compreensão da violência no Brasil, pois embora pareça suave e sorridente, a exclusão estrutural é perversa. Ela exclui, mas depois bota a culpa no próprio excluído.
Crise da Classe Política e Crise Democrática
A crise mais profunda Brasileira que mais afeta a democracia, na minha visão, portanto, é a falta de compromisso das elites com seu próprio povo – e por povo eu me refiro a pessoas negras, indígenas, funcionalmente analfabetas e ativos no setor informal. Estou falando de empregadas, mecânicos, lavadeiras, garis, eletricistas, etc.
Depois, a meu ver, há outras crises que fazem com que o problema básico, das elites, se agrave: são estes problemas mais técnicos, como o sistema político brasileiro que parece ter um incentivo, interno, de barganhar favores políticos para poder formar coligações e conseguir maiorias. Há muitos cientistas políticos que botam a culpa no sistema misto parlamentar – presidencial, dando incentivo à corrupção. Certamente há uma crise de segurança pública, pois é hora de a polícia civil e militar se juntarem para resolverem mais crimes. Também há uma crise de contratempos, pois, enquanto alguns setores da sociedade brasileira se modernizaram e mudaram de forma radical, outros ainda vivem em outros tempos.
Todas esses são problemas técnicos, alguns mais sérios que os outros. Nenhum País do mundo, no meu conhecimento, tem um sistema perfeito, instituições perfeitas. O Brasil tem leis muito bonitas, instituições bem desenhadas de forma que a crise atual da democracia não se explica por aí. Também não se explica pela oposição política, pois qualquer país tem oposição política. Explica-se, a meu ver, por uma crise de liderança, das classes que lideram, das elites.
Os ricos americanos exploram seus trabalhadores, mas depois criam fundações, se fazem filantrópicos e doam milhões a causas sociais. Não acho que isto seja uma boa fórmula – mas pelo menos mostra que os ricos americanos investem no seu próprio país. Onde é que os ricos brasileiros investem seu dinheiro? Não sei – mas certamente não nas causas sociais e culturais do País.
Se o que vocês querem é uma análise mais técnica da coisa, então diria que, além da crise profunda e estrutural causada pela elite neocolonial brasileira, existe uma crise da representação política, pois os nossos representantes eleitos não nos representam. Nem no Brasil nem em qualquer outro lugar. Em vez de buscar novos líderes, novos tipos de políticos, temos que buscar formas de tirar poder dos políticos, pois a representação política não funciona. Nunca funcionou. É uma forma de tutela, de tomar decisões para o povo, tido como incapaz. A representação nada tem a ver com a democracia, pois democracia significa domínio do povo comum, ou então, autogoverno do povo. A representação só entrou na democracia na Europa na época medieval e não para facilitar o autogoverno, mas para limitá-lo. Foi este o motivo também dos Fundadores da democracia americana. Temos que buscar outras formas de nos governar, mais diretas, mais envolvidas, com mais responsabilidades, mais participação e mais controle popular. Temos que tirar o poder político da classe política que, no fundo, não acredita na capacidade do povo e tem vergonha dele. Ou, então, temos que dissolver a classe política, pois não deveria existir uma classe assim numa democracia, pois numa democracia todo mundo deveria ser político.
Nisso, o Brasil também enfrenta uma crise de ideologias, visões e utopias, pois precisamos de novas utopias, novas visões para o futuro, novos modelos democráticos e organizacionais, e novas propostas para um futuro melhor, um futuro mais sustentável e um futuro com mais justiça, mais oportunidades para todos, e mais felicidade.
Nessa busca, o Brasil não está sozinho, mas os brasileiros poderiam ter lições a oferecer ao mundo, pois algumas soluções e políticas muito inovadoras se originaram aqui e estas poderiam oferecer respostas a algumas das perguntas que muita gente se coloca hoje - mesmo que parciais. Algumas cidades brasileiras, como Porto Alegre, pelo menos tentaram criar instituições inovadoras para incluir grupos historicamente excluídos no processo político. O Brasil, diferente dos Estados Unidos, apoia, de forma clara, as ações afirmativas. Outra fonte de inovação, penso eu, está muitas vezes escondida entre as populações indígenas e quilombolas do Brasil, pois alguns destes grupos têm praticado igualitarismo e democracia direta por séculos.
Conclusão
Na verdade, é minha convicção que as soluções para os problemas democráticos do Brasil e outros países semelhantes não virão do Norte, dos países colonizadores. É destes países onde a maioria dos problemas de hoje surgiu. É hora de buscar soluções locais, teorias locais, epistemologias locais, ontologias locais e filosofias políticas locais. É hora de formular perguntas de pesquisas e programas de pesquisas locais na busca de soluções para problemas locais. É hora de delinear modernidades locais, diferentes e divergentes da modernidade europeia, sonhada por Max Weber. E por "local" eu quero dizer indígena, comunidade de base, negra, e de bairro.
Se fizermos isso, então eu acho que nós também podemos começar a comparar e intercambiar ideias e propostas locais para o desenvolvimento, o crescimento e o bem-estar. Eu acho que já podemos aprender mais sobre a democracia e o desenvolvimento de zapatistas em Chiapas, México, que de Max Weber, de Erfurt, Alemanha, ou de Karl Marx, de Trier, Alemanha, pois seus universalismos são baseados em falsas premissas e as suas previsões partem de uma falta de autoconsciência crítica, particularmente da consciência das suas próprias limitações e preconceitos.
É hora de o Brasil parar de olhar para a Alemanha, Estados Unidos ou França para as soluções dos seus problemas democráticos e é tempo de olhar para dentro e descobrir o Max Weber e o Karl Marx brasileiros.
Eu suspeito que o Max Weber brasileiro não se graduou na UNEB ou em qualquer outra universidade brasileira, modelada no sistema francês ou em sistemas universitários alemães. Eu suspeito que o Max Weber brasileiro vive no Alto Xingu, ou no sertão, ou talvez na fronteira com o Peru, Venezuela ou Colômbia, em Roraima, Amapá, Acre, Pará, ou no Maranhão. É hora de resgatar a sabedoria de alguns intelectuais orgânicos e apresentá-la à universidade brasileira para que os estudantes possam se familiarizar com suas ideias e suas propostas para o futuro. Também é hora de operacionalizar as ideias desses intelectuais orgânicos para que eles possam se tornar perguntas de pesquisa, programas de investigação, teorias e hipóteses.
Nesse processo, a academia brasileira pode ter um papel importante. Para poder avançar e produzir análises adequadas e precisas dos problemas específicos, e muitas vezes locais brasileiros, a ciência brasileira pode se inspirar na arte e no mundo empresarial brasileiros – pois ambos se descolonizaram faz tempo. As ciências sociais e as áreas humanas, em particular, têm que “provincializar” a Europa (Chakrabarty, 2007), ou seja, pôr a Europa no seu lugar como uma região mundial como qualquer outra, pelo menos no seu apelo epistemológico e heurístico.
Isto não significa ignorar, ou abandonar, os avanços científicos produzidos na Europa ou nos Estados Unidos. Significa, ao contrário, apropriar-se, de forma pragmática, daqueles elementos que servem para a análise e compreensão dos problemas específicos brasileiros. Significa, também, iniciar uma busca de paradigmas, teorias, modelos, alcances e aproximações das realidades brasileiras mais adequadas e específicas – em vez de ampliar os conceitos europeus já existentes a ponto de captar realidades brasileiras. O exercício central das ciências sociais e humanas não deveria ser a busca de vias de fazer a realidade brasileira caber nos conceitos e nos modelos explicativos alemães. Deveria ser, ao revés, criar conceitos e modelos brasileiros. Isto significa também que essas áreas acadêmicas deveriam estar centralmente envolvidas no esforço de definir modernidades brasileiras próprias – que não são, nem poderiam ser, meramente cópias da modernidade europeia ou estadunidense. O Brasil, afinal, não é uma versão deficiente da Alemanha, da França ou dos Estados Unidos.
A busca de modelos, explicações, teorias, ideologias políticas e conceitos próprios é de especial relevância nas discussões atuais sobre o futuro da democracia brasileira, pois, neste momento, não há, rigorosamente, uma democracia brasileira. Há um modelo único de democracia representativa liberal, desenvolvida como resposta específica a problemas sociais e econômicos específicos da Inglaterra. Já a França pós-revolucionária e os Estados Unidos pós-independência desenvolveram variedades desse modelo original – adaptadas às realidades geográficas e históricas específicas. Na França, o caráter da cidadania, o centralismo, o leiguismo e a proibição do associativismo são todos frutos da experiência histórica específica francesa. O mesmo vale para os Estados Unidos, onde surgiu, inicialmente, uma democracia de escala local, organizada ao redor de “Townhalls”. A crise democrática brasileira, dessa forma, é também uma crise da falta de modelos e instituições próprios.
Democracia, afinal, significa autogoverno e autogoverno não pode ser feito para outros, em nome de outros, ou guiado pela tutela de outros. Segundo Clístenes, o criador da democracia de Atenas, “a democracia é possível porque a política é possível, e política é, por definição, o caso de todos" (Leveque e Vidal-Naquet, 1996: 111). Era assim em Atenas uns 2.500 anos atrás, quando Clístenes forçou cidadãos ricos e pobres a tomar decisões coletivas e juntar-se uns aos outros em associações políticas criadas artificialmente. E é assim hoje. Comunidades e associações locais têm que se unir e decidir por si próprias como querem viver - e não os seus representantes em Brasília ou seus assessores e consultores em Washington DC.
Referências utilizadas
Bourdieu, Pierre. 1987. Distinction: A Social Critique of the Judgment of Taste.
Cambridge, MA: Harvard University Press.
———. 2003. Language and Symbolic Power. Cambridge, MA: Harvard University
Press.
Chakrabarty, Dipesh. 2007. Provincializing Europe. Princeton, NJ: Princeton University
Press.
Faoro, Raymundo. [1957] 2001. Os donos do poder. Rio de Janeiro: Editora Globo.
Fernandes, Florestan. 2006. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Globo
Editoras.
Gnerre, Maurizzio. 1991. Linguagem, escrita e poder. Sao Paulo: Martins.
Holston, James. 2008. Insurgent Citizenship. Princeton, NJ: Princeton University Press.
Knight, Franklin W. 1990. The Caribbean: The Genesis of a Fragmented Nationalism.
New York: Oxford University Press.
Leveque, Pierre and Pierre Vidal-Naquet. 1996. Cleisthenes the Athenian. New York:
Humanity Books.
Mander, John. 1969. The Unrevolutionary Society. New York: Knopf.
Reis, Elisa. 1990. “Oppressão burocratica: O ponto de vista do cidadão.” Estudos
Historicos (Rio de Janeiro) 3, no. 6 (1990): 161–79.
Ulyssea, Gabriel, and Dimitri Szerman. 2006. Job Duration and the Informal Sector
in Brazil. Rio de Janeiro: IPEA.
[1] Este texto é o resultado de duas palestras. A primeira, intitulada “Linguagem e Poder”, foi proferida no dia 4 de maio, 2016, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus Brumado. A segunda, com o título “A Crise da Democracia Brasileira”, foi proferida no dia 6 de maio do mesmo ano na Faculdade Guanambi, Bahia. Quero agradecer o convite e apoio recebido do meu colega e amigo, o juiz federal e professor da UNEB, João Batista de Castro Júnior.
Leia mais