Notícias

O DECLÍNIO DO ARGUMENTO

O DECLÍNIO DO ARGUMENTO

                                         Braulino Pereira de Santana

                                        Professor da UNEB.  Doutor em Linguística pela UFBA

 

A bela metáfora da luz que ilumina uma ideia para que ela brilhe sobre outras, e se transforme em argumento (numa trama discursiva, fatos são agrupados de certa forma para sustentar uma ideia; argumentação se refere a essa trama, e tem raiz latina, que aparece também em palavras como argênteo, arguto etc.) para que possa ser usado no convencimento ou em persuasão de alguém, ou no estabelecimento da verdade, nunca esteve tão distante do debate público como nos dias de hoje.

Os moderados de vários lados, e nos referimos àqueles com certo poder e ascendência sobre seus liderados,  negligentes (para não dizer, cúmplices), deveriam assumir seus fracassos em conter seus radicais e imprudentes, com seus desatinos de ódio e insensatez, rebaixando à ideologia a vida humana, contribuindo para a destruição de valores básicos como compaixão pelo semelhante em momentos de dor, abandono e finitude do corpo.

E deveriam se reavaliar como lideranças – quem lidera com manifestações públicas como “Quem não reagiu está vivo” ou com "Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado”, proferidas por governadores em exercício atualmente logo após massacres de pessoas por forças policiais  –  estimula a barbárie e abre espaço para a putrefação social em vários níveis.   

Não se viu ninguém “de peso” entre os adversários do Partido dos Trabalhadores, ou apoiadores do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, transformar em um fato político (e a partir disso advogar uma possibilidade de congraçamento, reafirmando a possibilidade de se fazer existirem adversários e não inimigos) algumas manifestações de escárnio, deboche e proselitismo da aniquilação do outro, semelhante a discursos nazi, quando da doença e do passamento da ex-primeira dama Marisa Letícia.

Não vamos reproduzir aqui o volume e o nível de ignomínias proferidas por médicos (!) inimigos ideologizados do espectro político das esquerdas – amplamente divulgadas em redes sociais e facilmente recuperáveis pela internet – criminosamente inclusive ‘ensinando’ como matar  (!) do ponto de vista clínico. Não se faz isso aqui pois dá um frio na espinha imaginar-se numa cama de hospital e ser cuidado por médicos que se manifestam dizendo coisas como essas. Mas não nos iludamos: o cenário de hoje, com suas cruezas e performances de terror, já vem sendo desenhado há um certo tempo.

Quando um líder branco do MST rogou uma praga  (desejando ao defunto ainda fresco o inferno) num falecido ex-ministro da gestão FHC; ou quando o filho do atual governador de São Paulo morreu numa tragédia tempos desses atrás, e ignomínias parecidas lançadas por esses médicos contra o sofrimento da ex-primeira dama circularam na fala de alguns militantes adversários, desrespeitando o luto e o sofrimento da família do governador, nenhuma liderança importante dos adversários do espectro político dessas personalidades de direita se manifestou desautorizando ou até mesmo condenando seus radicais. Assim como certos pastores evangélicos em suas cruzadas anti-homossexuais continuam proferindo danos materiais e simbólicos  (um deles prometeu até ‘pau’ nesse bando de ‘depravados’), jamais sendo questionados por suas lideranças evangélicas, e aqui lembramos o silêncio covarde e criminoso sobre isso de uma beata candidata a Presidente da República  na eleição passada. A soma de todas essas atitudes e a ausência da delimitação de um marco de convivência mínima entre adversários na política brasileira desembocaram no que vemos hoje – um estado policialesco, beirando a uma distopia em que se lançam todos contra todos com suas armas discursivas e físicas de destruição em massa.

Um certo filósofo nos ensina que é preciso cautela na luta contra monstros, pois, ao usar as suas mesmas armas, corremos o risco de, assim como eles, nos tornarmos monstros também. Pois uma outra lição deveria advir dessa: devemos mesmo é evitar a cautela na luta contra monstros, combatê-los com gana para que eles não se reproduzam em grande escala como se tem feito hoje no Brasil.  

E aqui chegamos a um ponto nevrálgico do declínio do argumento: a  parcialidade criminosa da mídia (‘argumentativa’ por excelência), que se evidencia de forma crua e suja no enfrentamento zero a esses discursos – nenhum dos mais famosos veículos de comunicação (Veja, Folha de S. Paulo, Canção Nova, Rede Record, TV Globo) se manifestou em editorial contra uma afronta tão dolorosa aos valores da civilização, assemelhando-se assim em cumplicidade com o sangue e a barbárie distribuídos em redes sociais. E evidencia algo ainda mais grave: a total falta de compromisso público da mídia com um ideal de legitimidade de convivência entre os diferentes.

Ultrapassam-se fronteiras obscenas, que possivelmente serão lembradas com sangue e ódio num futuro próximo, ou os donos da mídia que agem dessa forma podem achar que vão fugir da verdade um dia? Ou as lideranças que não têm a coragem de combater os seus radicais terão legitimidade e força quando esses próprios radicais se voltarem contra suas próprias lideranças? Não haverá lugar seguro para se esconderem da verdade um dia – para ninguém. Assim como a Europa não percebe que as mesmas armas que ela usou na exploração de outros continentes estão sendo usadas contra ela agora em forma de atentado e esfacelamento de seus valores ditos civilizatórios, os donos de mídia no Brasil não percebem a armadilha em que estão se metendo, a cova que cavam para seus descendentes.

O preço da adesão precisa estar bem claro para todos os lados da luta política em sociedade. Empurremos esses discursos para os braços bolsonaros, legítimos e abalizados representantes desse modo de pensar. Vamos reservar para os nossos lados, mesmo que em conflito, mesmo que em opostos, armas discursivas mais elegantes. 

Um modismo trazido de ideais teóricos americanos assume protagonismo para ilustrar a agonia da argumentação como fonte de embate de ideia entre as pessoas no mundo de hoje – o termo ‘pós-verdade’ entra na agenda para tentar dar conta da escalada do confronto discursivo e da circulação de informações sem precedentes na história.  Poderíamos começar com a volta ao básico: procurar nos valores que nos fazem estar vivos e saudáveis quais deles merecem uma chance, e procurar fazer deles uma métrica para medir nossos adversários, assim como esperamos ser medidos por nossos adversários através desses mesmos valores. E a luta por uma maneira razoável de argumentar, que exija mais convencer do que persuadir alguém, pode ser uma estrada aberta à nossa frente ao evitarmos a morte certa na primeira curva da estrada.

 


O que dizem

Deixar mensagem

Leia mais