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O SEQUESTRO DAS CATEGORIAS DE RAÇA E GÊNERO

O SEQUESTRO DAS CATEGORIAS DE RAÇA E GÊNERO

                                         Braulino Pereira de Santana, Professor Adjunto da                                                  Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus I.                                              Doutor em Linguística pela UFBA.

 

No corredor exíguo do avião, uma mochila movida do compartimento de bagagem toca numa mulher (negra) que se sente agredida e grita em tom de defesa e ameaça velada – “a sua ignorância quase esfacela o meu rosto, moço”. E por mais que as coisas não tenham ocorrido desse jeito, e por mais que pedidos de desculpas tenham sido implorados, que não houve intenções, que ele não era grosseiro e, sobretudo, grosseiro com uma mulher, ela continuava remoendo o seu papel evidente de vítima dissimulada. O rosto supostamente esfacelado desfilava faceiro, sem machucados, sem marcas. E como sabemos, a vítima mais amparada e discursivamente rentosa é a poderosa mulher negra baiana.

Ele ficou por um momento aterrorizado, e visivelmente abatido. E se ela resolvesse seguir adiante e transformasse um episódio banal de descuido, negligência e pressa em militância de raça e gênero a reivindicar seu espaço de mulher negra violado dentro de uma aeronave por um homem e sua carga ancestral de patriarcalidade perpétua? E se ela aproveitasse Salvador toda dentro do avião e mobilizasse todos contra ele? Por azar, isso acabou se sucedendo.

Embusteira, ela se pôs a empunhar um discurso. Era algo feito com palavras de ordem bem arquitetadas, léxico marcado, sentindo-se protegida pela redoma tomada de seus compatriotas cuja única coisa em comum com ela (ainda bem) era a cor da pele.

O silêncio de todos enquanto o episódio se desenrolava deixou-a um pouco desnorteada – ela entendeu não encontrar guarida de ninguém ali. Ninguém se interessava por uma vitima sem motivos; uma mártir artificial, construída a priori por um imaginário comum em cursos acadêmicos de Ciências Sociais. O texto da mulher parecia ter saído de um manual que lista como se comportar discursivamente e como se vestir com os estereótipos de vítimas eternas – aquelas que se originam a partir de categorias como raça e gênero. Como fazer pose de mártir para que todos a tomem como tal.

Nunca em uma cidade como Salvador uma determinada raça de mulher como aquela do avião se configura minoria... ainda mais, minoria oprimida. Aqui elas são hegemônicas. Se elas não encontram espaço na mídia ou nos círculos de poder, que apontem os seus holofotes e sua militância para lá – para as religiões, canais de TV e shopping centers que as subjugam e as invisibilizam, e não para pessoas sozinhas por serem homens ou por serem brancos ou por serem altos ou magros.

A marcha das narrativas contra atitudes individuais e isoladas configura o que há de mais macabro e covarde de militantes políticos que sequestram etnias, gêneros e demandas alheias para si (lucrando com isso), jogam a sua vida para servir a uma causa o tempo todo e deixam de viver e ser amáveis no trato individual – uma gente sem voto falando em nome dos outros como se fosse dona das representatividades. Tornam-se pessoas amargas. Armadas o tempo todo, enxergam inimigos invisíveis. Pequenos conflitos ganham dimensões épicas e insensatezes descuidadas assumem logo etiquetas verborrágicas e desonestas – como racismo e homofobia.

A glorificação das multidões, a reciclagem das hordas e a revalorização das coletividades numa chave de luta a favor dos direitos das “minorias excluídas” pendulam com força num ataque ao alvo, geralmente sozinho, e com poucas chances de sobreviver depois.

E os coletivos em Salvador da militância racial contra unidades humanas não diferem muito dos bandos de skinheads que navegam pela madrugada paulista atacando homossexuais desarmados. A farromba toda se volta contra pessoas com pouca margem de manobra de defesa, ou cidadãos que, sem a eloquência discursiva dos militantes que ligam o gravador automático e transformam tudo em ideologia, acabam se transformando em bode expiatório.

Tudo é engenhosamente calculado para que as migalhas de sempre sejam transferidas sem obstáculos, para que os acordos sejam mantidos com regularidade e para que as hegemonias continuem com seu desenho estrutural e linear. Senão, como entender o discurso de um certo cantor da Banda Psirico, tempos desses atrás, reivindicando tolerância e respeito para “meu povo negro” quando um temerário empresário (branco) ousou apontar a violência que se espalhava no carnaval quando um certo bloco comandado por essa banda trafegava pela avenida? O suposto racismo denunciado sempre aponta alvos fáceis. Quando aparecem em redes de TV de famílias brancas sulistas com metodologia Ku Klux Kan e programação Gueto de Varsóvia de ser, dóceis e sorridentes, certos artistas dessas bandas desmoronam suas coragens na suposta luta anti racismo aplicadas somente contra pessoas anônimas em situações corriqueiras.

Tempo desses atrás uma senhora negra e evangélica foi atacada com requintes de crueldade por uma de suas coirmãs de raça por ter feito, supostamente, discursos contra as poderosas religiões de matriz africana. Identificar alvos frágeis da cadeia racista de indecências e contra eles declarar uma guerra assemelha-se a comportamentos americanos, mobilizando seus arsenais monstruosos de guerra e drones contra indefesas, falidas e, em termos militares, medievais cidades do Oriente Médio e da África. O dedo nunca é apontado para si mesmo.

Gênero e raça, categorias de 'análises antropológicas', são distorcidos e desviados de suas rotas para encontrar em pessoas individuais seus algozes. Jamais estruturas de poder seculares no Brasil são questionadas em seus marcos valorativos quando essas categorias estão em jogo. O atalho do dedo apontando alguém numa multidão, mais simples e preguiçoso, sempre encontra trilha certa em mulheres como aquelas. A vítima é tão perigosa quanto seus algozes conquanto desumaniza e manipula as emoções ao redor.

A mulher conduzia resoluta sua tática discursiva de guerra pelos corredores da aeronave, enquanto ele marchava rumo à porta de saída, envergonhado e ameaçado. Ali também residia um certo surto lésbico datado: mulheres feministas que lidam com um homem como se fosse um inimigo agem daquela maneira – transformam o cotidiano dos outros, suas pequenas atitudes, e gestos quase inconscientes, num inferno.

 

 


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