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ARMA DE FOGO PARA GUARDAS MUNICIPAIS

ARMA DE FOGO PARA GUARDAS MUNICIPAIS

                                                        João Batista de Castro Júnior, Professor Doutor do Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia, campus Brumado. 

Conta-se que Sílvio Santos, para salvar a revista Melodias, dirigida por seu amigo Plácido Manaia, criador do Troféu Imprensa, apareceu numa montagem como careca numa foto de capa em 1971, o que inflou a venda do periódico. Essa iniciativa do famoso animador televisivo de auditórios tem certamente um quê de beneficência e está a salvo de maiores críticas.

Todavia, no exercício de atividade pública, gestos de expansiva generosidade não gozam, por óbvio, da mesma receptividade, ainda mais quando interferem negativamente na estrutura social e jurídica. Nessta categoria é que pode ser enquadrado o ato solitário (monocrático, como significativamente se diz no jargão jurídico) do Ministro Alexandre de Moraes em permitir, a pedido do Partido Democratas, que guardas municipais portem armas de fogo.

A falta de consistência jurídica da decisão dá lugar à conclusão de que só a indústria armamentista vai ter mesmo o que comemorar.

Uma decisão como essa, num momento em que a população tanto se indigna com a violência da criminalidade organizada quanto paradoxalmente com os excessos policiais, jamais poderia ter partido de uma visão simplista fundada em argumento sem maior solidez jurídica.

Dizer que os guardas municipais podem contribuir com o combate a essa mesma criminalidade organizada não se funda em qualquer base técnica, até porque eles jamais foram testados nisso!

É puro artificialismo retórico a equiparação entre policiais e guardas, pois aqueles, sobretudo os militares que atuam na prevenção, se subordinam a uma rígida estrutura hierárquica, que, bem ou mal, funciona como contenção contra os excessos, sem falar que sua antiguidade institucional termina por servir como mecanismo de autorrespeito corporativo. Dificilmente se pode dizer o mesmo do poder executivo municipal, que tem atribuições  e finalidades delimitadas constitucionalmente. 

Uma força policial, entre outras coisas, se funda em trato técnico e psicológico que vai sendo aperfeiçoado com o tempo, o que não se compatibiliza com a ideia de criar o novo a partir de um argumento meramente jurídico de isonomia, o qual somente reforça a ideia difundida entre cientistas sociais de que os conceitos do Direito são socialmente autistas, pois frequentemente são adotados com motivações triviais que se encontram em manuais e compêndios assépticos. 

Essa decisão, portanto, jamais poderia ter nascido com cunho monocrático; ao contrário, deveria ter sido ao menos precedida de audiências públicas, com participação inclusive de forças de segurança munidas de estudos técnicos, que poderiam dar uma visão mais clara do complexo problema do combate à criminalidade e à violência.

Somente com lastro em discussões amplas, tal como se fez com o amianto, se poderia admitir uma afirmação como a do Ministro Moraes de que o aumento do número de mortes no país tem ocorrido em maior número nos municípios nos quais as guardas não podem usar armamento. Chega a ser grosseira uma afirmação dessas, quando se sabe que os municípios menores sofrem mesmo é com carência de efetivo policial e com estrutura mínima adequada por omissão governamental. Criar uma segurança armada paralela nesse contexto é aumentar a quantidade de água na panela do feijão e supor que isso alimentará a fome de novos comensais.

Nem o Ministro Moraes nem qualquer outro integrante daquela Corte têm estofo técnico para fazer asserções desse tipo sem amplo debate. Faltou a prudência necessária que pode – o que é mais grave – ser contraproducente: o aumento do sobressalto emocional da população com tanta gente com arma (e agora, então, sem preparo técnico, psicológico e institucional para seu uso) seguramente irá atirar mais lenha a esse fogaréu social instalado no País em que ninguém parece se entender, onde sobram ideias bizarras e falta serenidade dos representantes dos poderes constituídos.

Num panorama de inquietação social dessa natureza, a Suprema Corte mais que nunca deveria velar pelo princípio da colegialidade, segundo o qual o Tribunal, pela totalidade de seus membros, é chamado a decidir questões candentes.  

Essa é a função social dos órgãos de controle jurídico, que imuniza o tecido social e a paz pública contra os excessos, em relação aos quais não faltam observações freudianas de que o poder individual age como sucedâneo social da instintiva força fálica. A propósito, não é senão em nome da sedução fálica que muita gente busca ter uma arma (que já tem um desenho análogo ao órgão viril). Mas tal como o descontrole da aptidão procriadora do instrumento sexual masculino, ela pode criar problemas que abarrotam a vida forense. 

No caso das armas aos guardas municipais, o único beneficiário tangível – afora os jovens candidatos à truculência armada sem controle disciplinar historicamente estruturado – a ser fecundado pela decisão de Moraes é a combalida indústria armamentista. Estranhável que isso ocorra sobretudo quando o  cerco à criminalidade organizada, alimentada ilicitamente por desvios de armas dos seus fabricantes, tende a aumentar e também num instante em que o Congresso está a caminho de aprovar a limitação monocrática dos Ministros do STF .

O Ministro Alexandre de Moraes, tal como por ocasião das discussões sobre sua idoneidade, que precederam sua nomeação, mais uma vez deve explicações ao País.

Brumado, Bahia, 5 de julho de 2018. 

 


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